Negligência dos pais dispara em Minas e supera agressão
Além da violência física e sexual, a negligência dos pais é um drama crescente de crianças e adolescentes. Em Minas, as denúncias dobraram nos últimos três anos
O assassinato de Bernardo Uglione Boldrini, de 11 anos, expôs um drama crescente de crianças e adolescentes em todo o país: a negligência de pais ou responsáveis. Foi essa a queixa que o menino apresentou quando foi, por conta própria, ao Ministério Público em Três Passos (RS) em busca de ajuda. Ele não queria mais morar com o pai, o médico Leandro Boldrini, e a madrasta, a enfermeira Graciele Ugulini. Os dois e uma amiga do casal estão presos sob acusação de envolvimento na morte do garoto. O corpo foi achado enterrado em um matagal no dia 14. A Polícia Civil acredita que ele tenha sido morto com uma injeção letal.
O problema de que Bernardo reclamou é cada vez mais denunciado aos órgãos públicos. O número de ocorrências de violação dos direitos de crianças e adolescentes cresceu 56,4% no país entre 2011 e 2013, segundo dados do Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. As denúncias de negligência saltaram 76% no mesmo período. Em Minas, os índices foram ainda mais substanciais nos últimos três anos: o total de denúncias subiu 73,5%, enquanto o de negligência mais que dobrou. Em 2013, esse tipo de violação respondeu por 37% do total no estado, à frente da violência psicológica, física e sexual. Em 2011, a proporção era de 31,8%.
Entre 2011 e 2013, o Disque 100 recebeu 679,9 mil denúncias de violação de crianças e adolescentes no país (1.962,7 por dia), 231,2 mil (34%) somente por negligência. Em 2011, esse tipo de violação representava 32,1% do total, índice que subiu para 36,1% em 2013, acima da violência psicológica (24,7%), física (20,9%) e sexual (12,63%) e da exploração do trabalho infantil (3,93%).
Em Minas, o total de denúncias de violação contra menores saltou de 10.988 (30,1 por dia) para 19.062 (52,22 por dia) de 2011 a 2013. Os três anos registraram 49.076 casos. O de negligência totalizaram 17.029 no período, saltando de 3.504 para 7.037. Algumas denúncias envolvem mais de uma vítima, o que explica o fato de 12.337 vítimas de negligência terem sido apontadas apenas em 2013. O mesmo ocorre com suspeitos – no ano passado, houve 10,1 mil em território mineiro. Em todos os estados, as crianças e adolescentes são majoritariamente do sexo feminino e têm até 14 anos, enquanto a maior parte dos suspeitos é de mulheres entre 18 e 40 anos.
O tipo de negligência mais comum no ano passado foi o abandono afetivo, segundo o ouvidor nacional dos Direitos Humanos, Bruno Renato Teixeira. “Trata-se da situação em que os pais ou outros responsáveis estão presentes, mas não oferecem os cuidados necessários à formação psíquica e intelectual do filho. Hostilizam, não dão carinho, afeto e assistência emocional”, explica.
O abandono afetivo respondeu por 45% do total de denúncias de negligência em 2013, seguido por negligência em alimentação (18,7%), em limpeza/higiene (15,9%), em medicamentos e assistência à saúde (8,3%) e outras categorias.
O abandono afetivo de Bernardo era investigado desde novembro do ano passado. Como não havia sinal de maus-tratos e o pai afirmou que queria nova chance de aproximação, o juiz Fernando Vieira dos Santos manteve o garoto sob os cuidados do médico. Em 13 de maio, os dois seriam novamente ouvidos. Na opinião da vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), jurista Maria Berenice Dias, a decisão do magistrado foi equivocada. “Ele não deu atenção ao pedido de socorro do filho. Se houve uma denúncia, o juiz não pode partir da presunção de que o pai ama o filho. Deve partir da presunção contrária. Temos de dessacralizar essa ideia de que a família é, em princípio, um espaço de cuidado, de proteção”, afirma.
Na avaliação de Maria Berenice Dias, o principal motivo para o aumento no número de denúncias de negligência é uma mudança de postura do Judiciário nos últimos anos. “Antes, a negligência não gerava consequência nenhuma, a Justiça não atribuía nenhuma responsabilidade ao negligente. Ninguém iria fazer uma denúncia inócua. De uns dois anos para cá, houve uma sensibilização, um movimento no sentido de que a lei impõe obrigações aos pais”, analisa. “Os pais divorciados sabem, por exemplo, que têm de visitar os filhos, senão podem ser obrigados a pagar indenização”, acrescenta.
A jurista destaca também o abandono afetivo: “É o mais comum entre os responsáveis que não têm a guarda da criança ou do adolescente e não cumprem o dever de convivência, que não respeitam o direito de o filho ser visitado”, explica.
Fonte: Estado de Minas - 28/04/2014